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O Anjo do Pintor

Ferreirim, hoje, uma pequena localidade do concelho de Lamego, foi uma área cultural relevante nos finais da Idade Média, quando os condes de Marialva chamaram monges franciscanos para a região, começando-se a construir, o que durou vários séculos, o mosteiro de Santo António. A narrativa deste livro reporta-se ao século XIV, quando um grande pintor português de então, Cristóvão de Figueiredo, foi chamado ao local para fazer três retábulos para a Igreja. Pintor muito requisitado, com um prazo de oito meses para a obra, chamou para trabalhar consigo dois outros colegas de renome: Garcia Fernandes e Gregório Lopes. Passou a chamar-se a este conjunto de pintores os Mestres de Ferreirim. Falar de arte pictórica para crianças e até para jovens não é fácil. E é aí que entra a criatividade de quem escreve. Neste caso, João Manuel, apelando para o maravilhoso, cria um anjo, de discurso poético, para fazer conhecer os retábulos. Esse anjo é um “debuxo” do pintor, escondido atrás das pinturas, que se torna o guia da visita guiada, apontando os pormenores mais relevantes. O pintor debuxou-o “como auxílio e garantida proteção do seu trabalho”. E, por isso, esta personagem imaginária até tem data de nascimento: 1533, momento do acordo feito com o bispo de Lamego sobre o trabalho a realizar. Este anjo é na verdade um bom guia porque até a escrita regista o diálogo que estabelece com o recetor: “Estás preparado?”; “Segue-me então…”. Na viagem de conhecimento dos retábulos, ele fala das personagens, dos objetos, das perspetivas, das cores. Da Virgem há que explicar os painéis da Anunciação, da Natividade, da Morte e da Assunção. Os respeitantes a Cristo, devido a um incêndio em 1954, há dois grandemente danificados: a caminho do Calvário e Cristo cruxificado. Nestes dois painéis o anjo apela sobretudo para a sugestão a partir do que é visível. Todavia, o olhar torna a funcionar plenamente na descida da Cruz onde Maria, vestida de azul, e João, o discípulo amado, sustentam o corpo morto. Se a Ressurreição de Cristo é “o reinício da história”, este painel apresenta uma imagem de Cristo vigorosa, erguendo-se do túmulo, em contraste com os soldados adormecidos. Energicamente levanta o braço direito e olha intensamente Maria Madalena que vem ao longe, no jardim, para que o reconheça. Há ainda a relevar duas confissões do anjo: não sabe explicar a perda de um dos retábulos e angustia-se quando as pinturas são emprestadas para exposições. Ou não fosse ele o guardião, porque não é “só o anjo do pintor, mas o anjo destas pinturas!” Elsa Lé, numa magnífica interpretação das sugestões da escrita, constrói um anjo mensageiro de singular beleza cinética e cromática. O diálogo entre narrador e recetor é também doado pela ilustração, ora em roda pé com figurantes hodiernos, ora em figuras de costas na imagem. Aparecem como os fruidores das pinturas. No início da visita corporizados por uma cabeça aos caracóis de olhos bem esbugalhados estão os visitantes numa espera ansiosa.

Manuela Maldonado, Solta Palavra 20, Boletim do Centro de Recursos e Investigação sobre Literatura para a Infância e a Juventude, secção «Favoritos», 2013.