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A casa do João

Inspirado na lengalenga A casa do João, dois “Joões” criaram um belo livro. Nesta casa, mora uma família com as idiossincrasias próprias de todas elas. Mas também ali habita a bruxa Mafalda, o Migalha (que é um cão), um rato e um gato, a Mariana e até um poeta. Para conhecer todos os seus habitantes, reais e imaginários, terá de se deter a observar as inconfundíveis imagens de João (Vaz de Carvalho) e as palavras sempre renovadas de João (Manuel Ribeiro).

Ora “escutem” O que está, está:

“Que está na casa?
– Um grão na asa.
Que está no telhado?
– Um gato escaldado.
Que está na chaminé?
– Uma crista de garnisé.
Que está no quarto?
– Um colorido lagarto.
Que está na cozinha?
– A galinha da vizinha.
Que está no palheiro?
– Uma agulha de costureiro.
Que está no quintal?
– Um mudo em arraial.
Que está no portão?
– Um menino pedinchão.
Que está na nesga?
– O Rossio na betesga.
Que está na viela?
– Um fidalgo de meia tigela.
Que está no meio da rua?
– Um poeta a ladrar à lua.”

Rita Pimenta
Público, «Dez bons livros para crianças e jovens publicados em 2012», 22 dezembrpo 2012.


Livro do Mês do CATA LIVROS

Esta é uma das lengalengas que o escritor João Manuel Ribeiro guarda com mais carinho dos seus tempos de criança. Talvez achasse na altura que este João em cuja casa entramos poderia ser ele… E é normal que muitos meninos e meninas gostassem de viver num lugar tão divertido, onde a mãe conta histórias de encantar, a irmã sonha com a chegada de um príncipe (seja ele jovem ou velhote) e há um gato e um cão que brincam ao gato e ao rato para caçar a malvada bruxa Mafalda, que rouba sonhos sem muita arte. Um terceiro João, o Vaz de carvalho, ficou responsável pela pintura da casa, que embelezou com desenhos onde o humor, os grandes narizes e olhos esbugalhados espreitam à janela.

Cata-Livros


Com seu habitual jeito de versejador de lengalengas, trava-línguas, limericks, usando frases idiomáticas da língua portuguesa que hoje se estão a perder como: um poeta a ladrar à lua, um fidalgo de meia tijela, o gato foi às filhós, o fruto proibido é o mais apetecido, entre outras, João Manuel Ribeiro começa por apresentar, no primeiro poema, uma família tradicional com pai, mãe, avô, uma filha e um gato caraterizado por traços peculiares, deixando propositadamente de fora o filho João, o protagonista. Porém, no segundo poema, com a introdução de uma bruxa, inverte-se o processo do real para o imaginário e, agora, a casa é só do João, feita sem janelas nem porta onde cabe toda a fantasia, humanizando-se, ao modo de fábula, ratos, cães, gatos e até, surpreendentemente, há a arca do banzé, símile da de Noé donde espreitam e coabitam animais domésticos e selvagens. O ilustrador, João Vaz de Carvalho, ao assumir um traço caricatural próximo das representações infantis, omite o João ao apresentar as primeiras personagens, remetendo-o para a sua casa de faz-de-conta, o verdadeiro lugar das suas aventuras. A família, à moda de retrato, apresentada pelo protagonista surge numa representação estática. Toda a outra figuração é de movimento, em traço alongado. A imaginação anda à solta e a hipérbole é legitimadora.

O design e a paginação de Anabela Dias combinam com mestria os dois códigos em presença: o escrito e o icónico, privilegiando nas guardas do livro o gato e o rato em situação inversa. No primeiro caso, o rato atrás do gato introduz-nos no fantástico, no inverosímil; no segundo caso, o gato atrás do rato restabelece a ordem do real.

Manuela Maldonado
Solta Palavra 19, Boletim do Centro de Recursos e Investigação sobre Literatura para a Infância e a Juventude, secção «Favoritos», 2013.