A literatura infante do poeta

Escrítica – João Manuel, sua carreira profissional é quase que inteiramente dedicada à produção e o estudo sobre a narrativa e a poesia infanto juvenil. De onde vem o interesse pelo gênero, seria da tua própria infância?

Assim é, na verdade. O meu gosto e consequente interesse pela literatura em geral e pela poesia em particular encontra as suas raizes na infância, vivida em meio rural e sob o olhar sábio do meu avô materno. Foi ele que me fez ouvir, de viva voz, as cantilenas, as lengalengas, as charadas, as anedotas da tradição oral a par de muitas histórias da mesma tradição, ora contadas ora recriadas conforme as circunstâncias e as necessidades. Mais tarde, na escola, tive oportunidade de reencontrar muitas das histórias contadas pelo avô e isso foi verdadeiramente surpreendente e conduziu-me ao trabalho de análise e estudo da literatura. Eu diria que este foi um processo de iniciação vital: uma vez apaixonado pela literatura tive necessidade de a estudar e compreender. Porque cresci com a poesia (e a amo) quis e quero (ainda e sempre) conhecê-la melhor.

Escrítica – Sua obra é bastante vasta, mais de três dezenas de livros infantis, além da organização de diversas antologias e a publicação de livros de poesia. Como é lidar com o universo infantil e manter os passos no universo adulto?

Em 2015 completam-se 10 anos sobre a publicação do meu primeiro conto infantil. Por mero prazer lúdico e em resultado da insistência de alguns amigos. Depois de três livros inauurais, a experiência de escrever para crianças tornou-se comum, sobrepondo-se à escrita para adultos, para quem escrevi (até agora) só poesia. A sobreposição foi tal que só publiquei 2 ou 3 livros para adultos e sem grande relevância. Ultimamente, e sobretudo com a participação regular no Escrítica, retomei a escrita para adultos. Mas a sua pergunta introduz uma questão sobre a qual considero ser crucial refletir e dialogar: será que é legítimo catalogar a poesia? O que é e como se faz e se identifica a poesia para crianças e/ou para adultos? Será que os pequenos leitores não serão capazes de ler e de se de se apaixonar pela poesia dita para adultos? E não é verdade que os adultos se sentem fascinados por tanta da poesia dita para crianças? O que defendo é que, na poesia, a indicação do destinatário preferencial é meramente funcional. Poderia citar aqui uns quantos poemas de um e de outro tipo que provam esta convicção. Ainda assim, o que me parece absolutamente relevante é que se leia e se escreva poesia e, no fim de contas, se viva poeticamente.

Escrítica – Fala-se, desde a década de 70, ao menos aqui no Brasil, sobre uma Literatura Realista para Crianças, com foco em um público pré-adolescente, na qual são abordados temas que, a princípio, não eram considerados “assuntos para crianças”, como por exemplo: morte, divórcio, sexo e problemas sociais. O que você pensa sobre este viés da literatura infanto juvenil? Você considera viável a junção entre fantasia/magia e o papel de conscientizar?

Recuso que, na literatura, seja ela para que destinatário for, haja assuntos tabus, malditos ou proscritos. A Literatura para Crianças é literatura de corpo inteiro, não é uma literatura menor. Neste contexto, este tipo de literatura deve tratar todos os assuntos, também os rotulados como fraturantes. Logo, não entendo a postura realista como um viés. Antes pelo contrário, viés é excluir as temáticas referidas deste tipo de literatura. O respeito pela criança e pelas suas especificidades leitoras não pode constituir um obstáculo (ou uma censura) à abordagem de temas conectados com as experiências do quotidiano. A questão não está no «quê», mas no «como». Pode, efetivamente, tratar-se qualquer tema na Literatura para Crianças desde que se tenham em conta as especificidades do destinatário. A junção entre fantasia/magia e o papel de conscientizar não só é viável como absolutamente necessária e até urgente, sob pena de cairmos em moralismos estéreis ou de abdicarmos da função socializadora deste tipo de literatura.

Escrítica – “O Pequeno Príncipe” (1943), de Antoine de Saint-Exupéry, talvez seja a obra que marca uma fronteira muito frágil entre a literatura infantil e a literatura, digamos, para adultos. A obra é muito popular entre as crianças crescidas (risos) por ser uma peça filosófica com uma poética extremamente elevada. Gostaria de saber o que você pensa a este respeito e se você considera que realmente há uma fronteira entre ambas e onde ela estaria.

 Todas as fronteiras são estéreis e «coisa» de adultos. As crianças, como escreve Yevgeny Yevtushenko a propósito da poesia, são como aves que ignoram todas as fronteiras. Há obras classificadas de Literatura para Adolescentes ou Jovens (sobretudo de aventuras) que não foram escritas preferencialmente para eles, mas que eles adotaram e fizeram suas e que ganharam um estatuto distinto. Ao citado «O Pequeno Príncipe» podíamos acrescentar «Momo» ou «A História Interminável», de Michael Ende. Ou tantos e tantus haikus / haikai de que as crianças gostam e que, às vezes, recriam. A haver fronteiras é a literatura para adultos que as ergue com a sua suposta dificuldade, o seu estatuto, as suas especificidades estilísticas e os seus códigos técnico-compositivos e semântico-pragmáticos. Para mim, a literatura é simplesmente isso, independentemente do seu destinatário preferencial.

Escrítica – O casamento entre texto e ilustração na literatura infanto juvenil é promissor e… indissolúvel? Tomando como ponto as tuas obras, como equilibrar duas expressões artísticas (o desenho e a escrita) num mesmo espaço sem que um se sobreponha ao outro?

Casar texto e ilustração é, com efeito, um desafio enorme. E quase sempre uma surpresa. Quem (só) escreve fica sempre dependente da arte e do engenho de quem ilustra. Nos tempos que correm, em que o álbum (picture book) se sobrepõe ao livro ilustrado, o texto corre o risco de se tornar minimalista ou de existir em função da ilustração. Ainda assim, reconheço que não basta o convívio entre as duas expressões artísticas. É preciso que haja uma simbiose em que a configuração de uma não subsista sem a outra. Sim, talvez «indissolúvel» seja a palavra exata para descrever o que deve acontecer na literatura infantojuvenil. Nos livros que escrevi, há casos em que isso é evidente e outros em que não é tão clara essa relação. As causas para isso são múltiplas e nem sempre se relacionam exclusivamente com o texto e a ilustração. Por outro lado, como escrevo sobretudo poesia, a dificuldade é acrescida com a variedade temática dos poemas e a especificidade deste tipo de texto. Mesmo assim, casos há em que o resultado se me afigura surpreendente (como por exemplo em livros como «Gémeos», «A Casa Grande», «A Casa do João», entre outros).

Escrítica – Aqui no Escrítica, você nos apresenta poemas das séries “A Tabacaria do Alves” e “Notícias Fugazes sobre o Amor”. Gostaria de obter do próprio autor as impressões sobre estas séries. Como é escrever versos sob e sobre temas fixos?

 Como referi anteriormente, a participação no Escrítica fez-me retomar a escrita de poesia para adultos. Tenho, assim, podido desenvolver alguns projetos que guardava na memória para executar futuramente. Um, mais lírico, prende-se com a experiência amorosa, experiência carregada de densidade e simultaneamente de fugacidade. Como se ao amor fosse inerente a antinomia, o paradoxo. É essa tensão dialética que procuro explorar na série «Notícias fugazes do amor». É a minha «versão» da história do amor, reconhecendo-me eu como um «terrorista inviável». Em «A Tabacaria do Alves» é outro o jogo. O propósito que preside à série é a de um diálogo entre o Alves, o dono da tabacaria mencionado num dos poemas, e o próprio Álvaro de Campos. Este diálogo raramente é real; é, antes, intertextual. Situa-se ao nível das metáforas, das ideias, das ações. O Alves aparece como «advogado do diabo», questionando e problematizando a metafísica do engenheiro, alter-ego de Fernando Pessoa. A aproximação aos poemas desta série, para se tornar divertida e significativa, reclama a leitura dos poemas de Álvaro de Campos. Independentemente dos resultados poéticos, tenho de reconhecer que o processo de escrita destes textos tem sido absolutamente gozoso e prazenteiro. Isto bastaria para os ter escrito. Se alguns leitores também desfrutarem deles, ficarei duplamente feliz…

 Escrítica – Você esteve a frente de projetos literários (“Raras Aves Raras”, “Quem do Alto Olhar” e “Viagem às Viagens”) nos quais houve a participação de estudantes. Em que consistem estes projetos?

 Estes projetos são parcerias com alunos e professores de escolas. Nenhum deles foi iniciativa minha. Resultaram de convites que me foram endereçados e que aceitem com gosto, porque me possibilitaram trabalhar o texto poético na escola com discentes e docentes. E a poesia ocupa, ainda, na escola um incompreensível lugar de menoridade literária. Com estes projetos, tive oportunidade de constatar e mostrar o contrário. A poesia é, pode ser, um inestimável contributo para a educação em geral, e para a educação literária em particular. Os projetos mencionados nasceram todos de pré-ocupações que habitavam as escolas com que colaborei. Numa era a defesa de aves em perigo de extinção (daí o título «Raras Aves Raras»); noutra era a beleza, o património e a festa aglutinadora da vida das pessoas numa pequena cidade do interior algarvio («Quem do Alto Olhar); e, finalmente, a necessidade de congregar as personagens da história, local e nacional, que tinham sido cartaz das Viagens Medievais de dada localidade do norte de Portugal («Viagem às Viagens). No processo de escrita foi fundamental o papel dos professores que agarraram cada projeto como oportunidade criativa e educativa. No primeiro, foi também importante o trabalho do ilustrador, pelo acompanhamento quase coetâneo aos textos.

 Escrítica – Para escrever para os pequeninos, o que é preciso? O que as crianças gostam e procuram nos livros? Existe uma resposta para estas perguntas todas?

Gostava de responder-lhe com brevidade e simplicidade. A verdade é que não sei o que é preciso para escrever para os pequeninos que seja distinto de escrever para adultos. Talvez a única nota distintiva seja a de ter permanentemente em conta (as características d)o destinatário, mas talvez nem mesmo isso, como já insinuei anteriormente, seja absolutamente específico. Ainda assim, ouso dizer, talvez ingenuamente, que para escrever para crianças é preciso habitar metaforicamente o reino da infância (sem que isso se torne condição exclusiva). O que as crianças gostam e procuram nos livros é a vida e a realidade que só os livros sabem dizer tão bem. O livro é, para muitas crianças, um lugar de linguagem no qual exploram o seu próprio contentamento (Christopher Fry) ou, como Nadine Gordimer diz a propósito da poesia, pode ser também «ao mesmo tempo um esconderijo e um altifalante», uma explosão de emoções (nem sempre doces, mas contraditórias e inquietantes, por vezes). Em resumo, não creio que haja uma (só) resposta para estas perguntas todas. Há respostas. Muitas. Múltiplas. Variadas. Nascidas da subjetividade das circunstâncias e da objetividade dos argumentos. Quanto a mim, ensaio cada resposta com a má educação de outra(s) pergunta(s). Com dúvidas nem sempre metódicas! Talvez este seja ainda o caminho possível para a verdade, a beleza e a justiça… (que não desisto de procurar, apesar de tudo).

Emiliana Carvalho

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