A circulação precoce dos relâmpagos
de João Manuel RibeiroHá um universo plausível na poesia do João, um universo feito de haver nomes com que chamar as coisas, com que chamá-las a uma existência própria, dentro de um contexto vital circunscrito, tão confessional como uma caixa em que se guardam memórias não partilháveis. Trata-se de um universo plausível com que o poeta reescreve a natureza insólita da geometria anómala do poema.
A circulação precoce dos relâmpagos é um livro despretensioso, fenomenologicamente e numenologicamente, naquilo que descerra e naquilo que encobre, na sua aparência de livro e na poesia que o enche e transborda. Sinto que não é maior ou menor do que deveria ser e acredito, no momento em que o fecho, que se trata de um acontecimento estruturalmente coerente consigo próprio.
Creio que se trata de uma poesia que não depende necessariamente da metáfora, que não agride pela dilaceração das entranhas da linguagem. O manuseamento que faz da metáfora não é surrealista; apegasse ao nome das coisas sem ceder à realidade, enquanto porção da vida excessivamente mensurável. Parece-me uma poesia auto-contemplativa, mas não hermética.
Traduz um certo equilíbrio, como se soubesse expor feridas sem a limitação do sofrimento, com um estremecimento que não abala e que fere de morte antes que tenhamos percebido o perigo. Na escassez extrema das palavras, guarda uma certa comoção na superfície dos poemas e deixa-nos [não sei bem se no fundo da boca ou no fundo da consciência] um sabor a algo antigo como se o Espírito pairasse ainda sobre a superfície das águas do princípio.
Há na poesia do João o apelo a uma certa corporeidade que, na minha opinião, traduz um sentimento em que uma certa sensualidade insatisfeita e uma certa espiritualidade impura se temperam mutuamente. António José Saraiva refere-se de uma certa religião do amor na poesia e na arte portuguesa e pode dizer-se que é entre nós quase uma forma de misticismo, e de um misticismo que não logra despegar-se inteiramente da carne. Poderemos falar de marcas de um neo-saudosismo que habita a poesia de vários poetas cristãos, como por exemplo Daniel Faria ou José Tolentino Mendonça? Seja como for, A circulação precoce dos relâmpagos encerra, na minha opinião, uma parte do novelo afectivo que povoa a complexidade específica da poesia e da filosofia portuguesa na sua expressão mais autêntica e mais profunda.
De resto, creio que se trata de uma poesia que exprime uma extremamente sensibilidade e atenção, irmanada com a poesia do inesquecível Daniel Faria; que fala das casas e do silêncio, das mãos e de dedos na anatomia de palavras e poemas; que fala das pedras, do coração e de outros objectos cardíacos, de mulheres que são como casas e da morte como se fosse um silêncio por dentro da circulação precoce dos relâmpagos. E na geografia dos seus versos, a poesia do João tem luz própria por dentro de ser iluminada na periferia da noite.
José Rui Teixeira, Capela de Fradelos, 5 de Maio de 2007