Grande entrevista ao Infocul.pt – João Manuel Ribeiro: 10 anos de carreira em entrevista!

João Manuel Ribeiro é um poeta e escritor que celebra 10 anos de carreira. A sua escrita é maioritariamente dedicada aos mais novos, mas a sensibilidade com que escreve deve ser sentida por pequenos e graúdos. Um poeta de emoções em entrevista ao Infocul, abordando o seu percurso, a sua obra e também desvendando um pouco do seu lado mais pessoal, que acaba por ser importante na arte de bem escrever.

Nasceu em Oliveira de Azeméis decorria o ano de 1968. A sua biografia revela ainda que é Doutor em Ciências da Educação, pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, com dissertação sobre «A Poesia na Escola – Resposta ao texto poético e organização do ensino». Mestre em Supervisão Pedagógica e Formação de Formadores, pela mesma Faculdade, com dissertação sobre «A Poesia no 1.º Ciclo do Ensino Básico – Das Orientações Curriculares às decisões docente». Master em libros y literatura infantil y juvenil, pela Universitat Autònoma de Barcelona. Mestre em Teologia, pela Universidade Católica do Porto, com dissertação sobre «A evolução espiritual de Antero de Quental – Um itinerário da modernidade em Portugal». Licenciado em Teologia pela mesma Universidade. Formador de professores. Formador de formadores. Formador da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas. Sócio da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto.

Em 10 anos de carreira conta com aproximadamente 50 obras editadas. De seguida viaje pelo percurso pessoal e profissional de João Manuel Ribeiro.

A escrita foi um amor sempre presente na vida ou algo que foi sendo construído?

A escrita foi, efetivamente, como diz, um amor sempre presente, mas que foi sendo construído. Diria que uma coisa é a paixão pela escrita, que me acompanha desde tenra idade, e outra bem diferente é a consciência da escrita para os outros e, concretamente, para as crianças e jovens, que se construiu e foi aperfeiçoando à medida que fui publicando e sendo lido pelos pequenos leitores.

Aproximadamente 50 livros em 10 anos dá uma média de 5 livros por ano. De onde vem tanta inspiração? É algo tão natural como respirar ou tudo isto é fruto de uma grande criatividade?

Os livros nascem de múltiplas circunstâncias. Uns nascem da criatividade (do tempo que se perde/ganha a olhar uma flor), outros nascem de alguma pulsão provocada por qualquer emoção; outros ainda nascem de alguma provocação (entenda-se: encomenda). Diria, portanto, que a escrita, ou a inspiração, como lhe chamou, é natural como o respirar em alguns casos, fruto da criatividade em outros e, em outros ainda, do trabalho aturado e atento.

O segredo está no gosto e na paixão pela escrita.

De todas as obras qual a mais marcante e porque motivo? (Bem sei que todas são especiais…)

De todas as obras que publiquei, a mais marcante intitula-se «Meu avô, rei de coisa pouca», porque é um livro autobiográfico, que narra a minha infância com o meu avô, pessoa que me «configurou» existencialmente. Como se diz no parágrafo derradeiro do livro, «ao fim e ao cabo, no princípio de mim – o que sou, o que tenho, o que sonho e escrevo – está o meu avô, rei de coisa pouca.» Há outros livros em que falo do meu avô, mas este, pela carga simbólica que carrega, é-me particularmente significativo.

A sua escrita é maioritariamente dedicada às crianças. É mais fácil ou mais difícil escrever para os mais novos? Eles não são mais exigentes?!

Considero que é mais difícil escrever para crianças, não exatamente por causa da exigência dos destinatários, mas pela exigência que a si mesmo deve impor-se quem escreve para crianças, uma vez que se torna necessário, tanto quanto possível, respeitar as especificidades gerais do destinatário, sem o doutrinar. Diria que o compromisso do escritor com o pequeno leitor é maior e mais exigente.

Para quem não está tão familiarizado com o seu percurso e obra, como se/a define?

Julgo que posso dizer que sou um poeta, mais do que escritor. Um andarilho: de um livro para outro, de uma escola para outra, de um evento para outro, de um projeto para outro. Sempre com poesia e livros na bagagem. Gosto de brincar com as palavras, de as olhar, de as namorar, de perder/ganhar tempo com elas. Gosto de inventar realidades que só existem nas palavras e em mais lugar nenhum. Gosto do silêncio que há em muitas, quase todas, as palavras.

Como escritor, sente que as pessoas estão mais ou menos pré disponíveis a ler?

Sinto que as pessoas estão disponíveis para ler mais, o que não significa que estejam a ler melhor. Lê-se mais hoje, porque as plataformas digitais e as redes sociais o exigem, mas é um tipo de leitura sem esforço e sem grande fruição estética; é ler por satisfação de necessidade ou curiosidade, e não a leitura como ato voluntário de enlevo estético, de fruição gozosa e aprazível do que se lê. Parece-me que aumentou a literacia, mas não a literacia literária. Talvez porque não tenha havido uma consistente educação literária. Note-se, por exemplo, que só muito recentemente a educação literária foi introduzida nos Programas e Orientações Curriculares. E mesmo assim, parece-me que o que possa conceber como educação literária precisa de ser muito bem discutido e entendido para que não se produza o efeito contrário de «aversão literária».

Ler é permitir que o pensamento viaje por sítios que de outra forma seria mais complicado? Ou é apenas um hábito de cultivo?

Ambas as coisas. Para mim, é um prazer e um hábito, ou talvez melhor, é um hábito que me dá prazer. Ler é, para mim, uma comoção, na medida em que envolve de tal modo que me sinto interiormente arrastado pelo que é (d)escrito. O que é ler, o que pode/deve ser, é objeto de precisões e discussões académicas infindáveis. Apesar de reconhecer que essas discussões são relevantes para a educação, apraz-me pensar na leitura como algo absolutamente necessário para que cada um se cumpra como pessoa, como um bem de primeira necessidade, como algo sem o qual o homem é manifestamente mais pobre. Não se trata, portanto, do ato de ler, mas da postura do ser humano diante de si, dos outros, do mundo, que reclama exercícios permanentes de leitura (interpretação, análise, juízo, etc). Ler é, portanto, uma ação polifónica. O seu cultivo pode ser apenas um hábito e/ou ser, simultaneamente, uma aventura por territórios infindáveis e insondáveis.

Além de escritor, poeta, editor, investigador, organizador, é pai de família. Como se consegue arranjar tempo para tudo?

Procuro, ao máximo, esquivar-me do tempo cronológico e viver, quanto posso, no âmbito do tempo psicológico. Porque gosto muito do que faço, arranjo sempre tempo e oportunidade para o fazer. Há coisas a que me dedico mais e a outras menos. Além disso, sou minimamente organizado, o que efetivamente me permite gerir o tempo disponível e fazer mais coisas.

Qual a importância da família no seu percurso e na sua obra?

A família é uma instância afetiva importante, porque está sempre presente, como diz Richard Bach, no seu livro «Não há longe nem distância». É um tema que aparece na minha obra quase sempre pela mão do meu avô. Os dois livros da coleção «Os tesouropatas» têm como protagonistas três crianças que vivem em casa dos avós, porque os pais, devido à crise, tiveram de ir trabalhar para o estrangeiro, apresentam um avô, arqueólogo, que «inventa macacadas» para educar e entreter os netos. Ou seja, honestamente, entendo que na minha obra, como no meu percurso, o que é verdadeiramente importante é o avô e não exatamente a família no seu todo.

Como analisa o actual mercado dos livros em Portugal e de que modo a era digital o condiciona?

O mercado atual dos livros em Portugal obedece à lógica do mercado capitalista e, como tal, edita-se e vende-se o que as pessoas procuram. É assim, ponto final. É um facto sobre o qual podemos tecer considerações de vária ordem. Prefiro não dissertar muito sobre o mercado. Gostaria, antes, de pensar os livros como oferta literária e cultural e, neste assunto, as editoras que estão no mercado são muito distintas, apostando umas na qualidade (a qualquer preço) e outras abdicando dela (por causa do preço). Mas talvez sempre assim tenha sido.

No que diz respeito à dita «era digital», não creio, sinceramente, que esta provoque, pelo menos para já, grandes danos no mercado livreiro, porque o livro é um objeto com uma identidade própria, não sendo apenas uma plataforma de registo de palavras. O livro tem uma simbologia peculiar. E quando falamos de livros de literatura, isto é ainda mais verdade. E se for de literatura infantojuvenil com maioria de razão, sobretudo devido à dimensão visual (de ilustração) característica deste tipo de livros, que se perde (ou ofusca) no digital.

De qualquer modo, o que me parece relevante salientar nesta “luta” entre papel e digital é a necessidade e oportunidade de leitura, independentemente do suporte / ferramenta de leitura.

Efectua muitas visitas a escolas. Como tem sido a experiência e qual o momento mais marcante/caricato que lhe foi proporcionado?

Eu gosto de me encontrar com os (meus) leitores, em escolas e bibliotecas. Gosto do encontro, olhos nos olhos. Gosto de apalpar o pulso à adesão ao que escrevo e isso percebe-se pelas perguntas que me fazem, pelos trabalhos que me apresentam, pelo entusiasmo com que me recebem e falam comigo. Gosto de pensar (e constatar) que os pequenos leitores são inteligentes e capazes não só de identificar as personagens e as características de um texto, mas são capazes de fazer inferências e pensar autonomamente a partir do texto lido.

Gosto ainda de visitar escolas, porque, não raras vezes, os episódios, as palavras e as perguntas que me fazem tornam-se matéria-prima para novas histórias, como já aconteceu com alguns contos que escrevi e publiquei.

O episódio mais marcante foi o testemunho de um aluno do 5.º ano que, depois de ler o «meu avô, rei de coisa pouca», me disse que achava que eu só escrevi poesia, mesmo quando escrevia em prosa. O testemunho denota uma sensibilidade grande e apurada, que me satisfez. De caricato não guardo nada que tivesse merecido registo.

Em 10 anos de carreira o que mudou no mundo dos livros em Portugal?

Mudaram muitas coisas. Em primeiro lugar, mudei eu: cresci, aprendi a escrever melhor (acho), aprendi a respeitar os pequenos leitores e as suas especificidades e exigências, aprendi a valorizar e a desvalorizar detalhes e opiniões. Aprendi a estar com os pequenos leitores. Aprendi a situar-me no “meio literário”.

Em segundo lugar, no mundo dos livros, e concretamente dos livros infantis, mudaram muitas coisas: nasceram e morreram muitas novas editoras de literatura para a infância, aumentou a quantidade de pessoas a escrever para crianças, houve um maior cuidado na ilustração, com muitos novos e bons ilustradores, e no grafismo dos livros. Foi decrescendo a importância e/ou o lugar do texto face à ilustração ou imagem (mesmo) nos livros de literatura infantil e (até) juvenil. Assumiu-se o álbum ilustrado (picture book) como o predileto dos leitores, mediadores e do próprio mercado livreiro. Aumentaram também as traduções de bons livros estrangeiros para crianças e não só.

Em terceiro lugar, mudaram os leitores. Hoje, creio, a capacidade de leitura é menor, simplificou-se o texto (desconfia-se das palavras difíceis), absolutiza-se o lúdico e o humor, e a vertente utilitária dos que se lê em detrimento da fantasia e da imaginação.

Cumpre-nos a difícil tarefa de ir encontrando respostas satisfatórias (e talvez provisórias) para o «novo e diverso» que permanentemente nos provoca e desafia.

Sei que estão a ser preparadas várias iniciativas para celebrar a década de carreira. O que pode desvendar?

Estão a ser preparadas, e algumas já em curso, diversas iniciativas. A primeira é a publicação de 3 antologias de poesia, concretamente: Poemas da Bicharada, E para o poeta outro modo de olhar (com seleção e posfácio da prof. Doutora Sara Reis da Silva, da Universidade do Minho e a participação de 10+1 ilustradores), Pó-pó-pó, tiroliroliroló (com CD oferta incluído, com música e interpretação de João Pereira e Nuno Brito).

Além disso, há um conjunto de iniciativas que se abriga sob a designação 10 de Letra, e que comporta pela divulgação de vídeos, testemunhos de amigos, jornadas literárias no Porto e em Lisboa e tertúlias mensais na Livraria Velhotes, em Vila Nova de Gaia.

Brevemente, será também lançada uma Revista de Literatura Infantil e Juvenil, intitulada A Casa do João, destinada a educadores, professores e pais, mas também às crianças, com periodicidade trimestral, online e em papel, gratuita.

Além dos livros, já exerceu também funções de docente. É um risco viver apenas dos livros em Portugal ou é possível?

É, decididamente, um risco. Em Portugal (e se calhar em qualquer outra parte do mundo) é complicado viver só da escrita, em geral, e ainda mais difícil viver só da escrita para a infância. A minha dedicação exclusiva à literatura é uma opção arriscada, mas consciente. É, em certo sentido, trocar o certo pelo incerto, o “haver” pelo prazer. Trata-se de, como costuma dizer-se, ter o prazer de trabalhar no que se gosta. E quando isso acontece as dificuldades superam-se.

Quais as medidas que poderiam ser tomadas de modo a incentivar a leitura?

A principal medida para incentivar a leitura, na minha opinião, é ler: ler individualmente, ler com os outros, ler para os outros, ouvir os outros a ler; ler todos os tipos / géneros de livros; ler desde os 9 meses aos 99 anos. As estratégias educativas, promocionais e outras, são importantes, mas, por si só, não são suficientes para incentivar a leitura. O melhor incentivo é proporcionar a experiência da leitura, é fazer dela uma companhia quotidiana, habitual, permanente. Isto é difícil porque reclama de todos, sobretudo dos pais e educadores, um investimento grande de… tempo e disponibilidade.

Depois, em termos políticos, era preciso passar das intenções às ações e apostar, claramente, decididamente, na educação e na cultura (incluindo a aposta efetiva nos seus agentes).

Em termos de redes sociais e plataformas digitais onde pode o público interagir consigo?

Esforço-me por estar, de modo ativo, em quase todas as plataformas digitais e redes sociais. Apraz-me manter os meus leitores sintonizados com o meu blogue – o andancasdopoeta.blogspot.com -, onde vou mantendo rubricas regulares, durante vários dias da semana: às terças, há poesia; às quintas, há dicas de leitura; às sextas, recomendo um livro; ao sábado, publico poemas sobre a paz, simplesmente, porque é preciso. Mantenho também devidamente atualizado o meu site institucional – joaomanuelribeiro.pt -, onde se pode encontrar de modo sistematizado toda a minha obra bem como os principais registos da minha atividade literária.

Além disso, cuido diariamente da minha página e perfil do Facebook, bem como a conta do Twitter, Tumblr, Instagram (bastante menos) e o canal do Youtube, onde vou deixando todas as aparições nos media (sobretudo na televisão).

Quem são as suas grandes referências em termos literários?

Em termos literários, a minha grande referência é a tradição oral popular portuguesa – o meu primeiro contacto com o que possa chamar-se de literatura chegou-me pelas rimas, cantilenas e lengalengas que me contou o meu avô, e esse universo contaminou-me definitivamente. Depois, quando me tornei leitor autónomo, influenciaram-me as fábulas em verso de João de Deus; Os meus Amores, de Trindade Coelho; Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles; Os Bichos, de Miguel Torga; As Folhas Caídas, de Almeida Garrett; O Cavaleiro da Dinamarca, de Sophia de Mello Breyner Andresen; Uma abelha na chuva, de Carlos de Oliveira; As aventuras de João Sem Medo e a poesia, de José Gomes Ferreira; as Poesias, de Álvaro de Campos; os Poemas Completos, Manuel da Fonseca; Antoine de Saint-Exupéry e o seu O Principezinho e a Cidadela; A História de Fernão Capelo Gaivota, a Ponte para a Eternidade, Não há longe nem distância, de Richard Bach. Também O Estrangeiro e A Peste, de Albert Camus; O Velho e o Mar ou Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway. Diria que, além da poesia de matriz tradicional, a literatura neorrealista, portuguesa e estrangeira, constituem os alicerces do meu edifício literário.

Como se define enquanto ser humano e o que que gosta de fazer em lazer?

Como alguém que quer e deseja ser isso: humano. Com poucas certezas, uma multidão de dúvidas, algum caminho feito e umas quantas histórias (reais ou inventadas) para contar. Com um pé no chão e outro nos sonhos que comandam a vida.

Há particularmente quatro coisas que gosto de fazer, mas não sei exatamente quando são trabalho ou lazer, a saber: ler, escrever, estudar e (fazer) nada. Esta última é das coisas mais deliciosas de se fazer. Como diz o Álvaro Magalhães, no poema «Fala da Preguiça»: «eu cá tenho muito nada para fazer».

Além destas coisas, gosto de ouvir música, de caminhar, de viajar, de andar de bicicleta e de um bom petisco.

Como escritor o que ainda lhe falta fazer?

Creio que me falta escrever um romance (para adultos). Guardo na cabeça e em muitas notas algumas ideias que me parecem boas, mas ainda não tive disponibilidade nem coragem para de dedicar a essa esforçada tarefa. Pode ser que algum destes dias, isso aconteça.

Que tema seria um grande desafio para ser escrito?

O tema da fragilidade humana. De como somos, absolutamente todos, frágeis e humanos e de como essa fragilidade nos devia irmanar mais. E como o paradoxal é tão comum à vida de todos. E como a contradição faz parte da condição humana.

Além deste tema, gostaria ainda de escrever sobre como o amor, apesar de tantas vezes descrito, dito, cantado, concretizado, é ainda um território desconhecido e inóspito. E como dele ainda sabemos tão pouco!

Se a sua vida fosse uma obra que título lhe daria?

Honestamente, não sei. Nunca tinha pensado nisso. Há alguns títulos de livros que talvez pudessem servir de legenda ao que julgo ser a minha vida: A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera; a Ponte para a Eternidade ou Estranho à terra, de Richard Bach; O Limpa-palavras, poema de O Brincador, Álvaro Magalhães.

[Publicado a 23/09/2017: http://infocul.pt/cultura/joao-manuel-ribeiro-10-anos-de-carreira-em-entrevista/]