Sendo os livros, um livro em particular, o motivo que hoje aqui nos trouxe, ouso iniciar esta breve intervenção com uma referência às minhas duas últimas leituras – por prazer e não só. Trata-se de Bibliotecas cheias de fantasmas, de Jacques Bonnet (Quetzal, 2010), e ABC da Crítica, de Nuno Júdice (Dom Quixote, 2010), duas obras impressivas, no primeiro caso, especialmente para quem gosta de livros, para aqueles que «perseguem livros quando são perseguidos pela fome de ler. Para devoradores de livros que nunca desistem», ou, no segundo, para aqueles que procuram «encontrar as questões que o texto coloca a quem o lê, procurando dar-lhes resposta», como se regista nos dois paratextos patentes nas contracapas dos títulos em causa.
A actividade de João Manuel Ribeiro, caracterizada pela dedicação e pela pluralidade, tem vindo, cremos, a configurar as ideias-chave das afirmações citadas. Perseguidor de livros, daqueles cujo alento parece nunca esmorecer, ao mesmo tempo que questiona os textos e quem os lê, João Manuel Ribeiro ou a sua ligação à literatura testemunha respeito pela palavra, pelo mundo e pelos Outros.
Repartida pela escrita literária – destaque-se, em particular, a sua poesia, uma expressão cuja singularidade e cuja inscrição no universo das novas vozes que se dedicam à literatura vocacionada para os leitores mais novos têm vindo a ser reconhecidas –, repartida, dizíamos, pela escrita literária, pela investigação sobre os livros, a leitura/recepção leitora e a literatura ou, ainda, pela edição, a atenção de João Manuel Ribeiro tem resultado na edição de obras assinadas por nomes como João Pedro Mésseder (O Pai Natal e o Maiúsculo Menino, 2009), Vergílio Alberto Vieira (A Casa de Cedro, 2010), Maria da Conceição Vicente (Histórias assim e a sério, 2010), ou Adélia Carvalho (Matilde Rosa Araújo, um olhar de Menina, 2010), apenas para citar alguns exemplos. Uma nota breve, ainda, para assinalar o facto das publicações da sua responsabilidade evidenciarem componentes gráficas e/ou visuais muito cuidadas, da responsabilidade de ilustradores como Anabela Dias, Marta Madureira, Gabriela Sottomayor, Sara Cunha, Carla Nazareth ou Ana Lúcia Pinto, entre outros.
Aos autores referidos e ao catálogo da editora Trinta por uma Linha ou de outras editoras (como a Terramar), vem juntando também um conjunto de títulos da sua própria autoria, ora em forma poética – como Rondel de Rimas para Meninos e Meninas (Trinta por uma Linha, 2008), Cantilenas Loucas, Orelhas Roucas (Terramar, 2010) ou Encrava-Línguas (Trinta por uma Linha, 2010) –, ora em prosa – como Eu fui o Menino Jesus (Trinta por uma Linha, 2010) ou O Rapaz da Bicicleta de Vento (Trinta por uma Linha, 2010).
A obra que motivou este encontro, Meu Avô, Rei de Coisa Pouca, como o título faz prever, centra-se numa figura cujo retrato começa a desenhar-se, directa e indirectamente, logo na abertura da narrativa ou no incipit: «A casa da eira era o palácio do avô. Nela tinha o seu trono, guardava a sua coroa e retinha os seus tesouros. Na verdade, era apenas um espigueiro antigo de granito. Mas não era o palácio que o tornava rei, era a sua condição de senhor de terras e céus, bichos e chuvas, ventos e aragens, romãs e bonecas de trigo. (…) De aspecto, o avô nada tinha de parecido com um rei. Era um homem simples, afeito ao trabalho, que se dividia entre a metalurgia e a agricultura, alto, ombros largos, cara de anjo papudo, com sulcos que o tempo foi esgravatando, mãos enormes, pés firmes.» (Ribeiro, 2011: 9). A metáfora anunciada pelo título prolonga-se ao longo de todo o relato e inúmeras associações transfiguradoras do protagonista a um rei acompanham também identificações como, por exemplo, casa da eira-palácio ou bicicleta-cavalo alado. Estas associações estendem-se ao discurso visual da publicação, da autoria de Catarina Pinto, e este, composto a partir de uma técnica mista (recorte, colagem, fotografia, etc.), cria a ilusão de diferentes texturas e perspectivas. Logo desde a capa e contracapa (que formam uma unidade semântica e que, pela representação, não isenta de uma significativa carga simbólica, de uma árvore e do herói da narrativa determinam um especial «horizonte de expectativas»), passando pelas guardas da publicação, até às imagens do miolo do volume, as ilustrações dão conta do carácter maravilhoso de certos momentos diegéticos, da forte presença do elementos naturalistas, da profunda ligação afectiva entre as personagens e do tratamento de temáticas intemporais.
Dos títulos dos nove capítulos que compõem a obra – «O cavalo alado», «O tamanho do reino», «A romãzeira e a menina», «O baile das bonecas de trigo», «O amigo da bicharada», «O mapa dos segredos» «O rio da vida», «Os últimos dias» e «Os idos dias que hão-de vir» –, bem como das ilustrações em páginas duplas que antecedem cada um deles, sobrelevam alguns dos topoi e dos aspectos simbólicos mais importantes da narrativa e, se fosse imprescindível a identificação de um leitmotiv da obra, diria que este possui uma dupla acepção, partilhando o ser humano e a natureza (e o seus ciclos) o lugar central. Com efeito, o homem impregnado de natureza e a natureza espelho do homem (numa relação de simbiose, por vezes, de contornos telúricos) afiguram-se os pilares que sustentam quer a (re)construção ficcional do avô João, quer a própria arquitectura do espaço, nas suas dimensões física, psicológica e social. Atente-se, por exemplo, nos seguintes segmentos textuais:
«Do pomar, o avô dizia:
– O pomar de um reino revela o coração de um homem, porque as árvores são irmãs do destino dos homens e fazem crescer na sombra a memória do que uma só vida não chega para viver. O pomar é o chão onde o homem planta o céu e o futuro. (…)» (idem, ibidem: 21)
«- (…) Se a natureza é mãe, é matriz. Compreendê-la é captar os mistérios da vida e, no fundo, de todas as coisas. (…)
– Eu apenas correspondo ao amor que a terra-mãe me dedica.» (idem, ibidem: 52).
O amor, que «serve para temperar todas as coisas» (idem, ibidem: 21), como se diz no texto, o amor aqui dado a conhecer em múltiplas vertentes – o amor do neto pelo avô, o amor do rei-avô pela sua rainha ou o amor à natureza, à terra-mãe ou «às coisas simples e pequenas» (idem, ibidem) –, releva da totalidade da obra, distinguindo-se como um dos eixos semânticos estruturantes da acção. O tom sentencioso e o carácter lapidar de certas expressões, mais recorrentes e evidentes à medida que a acção se aproxima do desenlace, denunciam uma especial atitude filosófica e existencial, em alguns momentos, muito próxima de correntes clássicas como o epicurismo – «A aceitação de que a vida é o que é, e assim é que é (…)» (idem, ibidem: 76) –, propondo-se, a cada instante, uma reflexão sobre a vida e a sua passagem, sobre a morte, sobre o tempo, sobre a memória, entre outros.
Referências histórico-culturais e literárias – estas últimas reflectidas, por vezes, na alusão a textos ou a partes de textos da literatura tradicional/oral) – perpassam toda a obra (Batalha de La Lys e a Primeira Guerra Mundial, Pégaso, a Bíblia, Federico Garcia Lorca, a ilha dos amores ou Alberto Caeiro), a par da presença significativa de vivências, costumes e hábitos do quotidiano rural (como, por exemplo, a desfolhada, motivo nuclear do capítulo intitulado «O baile das bonecas de trigo»), estimulam a leitura e promovem um convívio com uma cultura que reúne o universal e o local, o colectivo e o individual ou, ainda, o passado e o presente.
A criatividade da linguagem de João Manuel Ribeiro traduz-se, por exemplo, nas enumerações de elementos da natureza, descritos num registo que dá conta da visão sensorial do autor/narrador. Na verdade, a adjectivação abundante e as recorrentes metáforas contribuem para um descritivismo especial, que explora as potencialidades semânticas de um sensorialismo e/ou de um visualismo muito envolventes. Globalmente, Meu Avô Rei de Coisa Pouca caracteriza-se pela sua escrita bem ritmada – releia-se a afirmação «O ritmo que ponho em cada história que escrevo levanta-se de um baile com bonecas de trigo» (idem, ibidem: 76) –, com uma cadência própria, que desvela, com delicadeza e discrição, uma singular percepção do mundo, da vida, do eu e dos outros. Estas e outras características, que o espaço e o tempo desta intervenção não permitem questionar, mas que, no texto, surgem sintetizadas na expressão «jeito de tricotar paisagens com palavras e versos» (idem, ibidem: 76), podem ser comprovadas em excertos como o seguinte: «E deixei-me arrastar pelo corpo tenor de uma após outra boneca de trigo, que se agitavam agilmente, numa ronda de passos, gestos e sorrisos. E se a música nos acelerava, o rodopio era intenso, ao redor do corpo de cada boneca, ora permanecendo ora trocando de par, indo ao centro, voltando à roda, dobrando os joelhos em inclinação, erguendo os braços em aclamação. E as bonecas, fosse pela correria, fosse por qualquer outra magia do avô, iam adquirindo o corpo de formosas donzelas que nos afagavam os cabelos e cobriam de beijos e carícias.» (idem, ibidem: 38).
Retomo, para finalizar esta apresentação, algumas palavras de Nuno Júdice em ABC da Crítica: «é literatura tudo aquilo que reflecte um universo pessoal, que transporta uma imagem do mundo, que converte em arte o quotidiano, o efémero, o banal. Isso é feito através de um uso particular da linguagem, através do qual se torna possível o reconhecimento de uma personalidade e de uma diferença estética.» (Júdice, 2010: 68). Uma aproximação a Meu Avô Rei de Coisa Pouca e a percepção do gosto, da sensibilidade e dos valores que alimentam esta narrativa confirmam uma diferença estética, uma diferença que talvez possa encontrar a sua chave nas palavras de encerramento da obra: «Ao fim e ao cabo, no princípio de mim – o que sou, o que tenho, o que sonho e escrevo –, está o meu avô, rei de coisa pouca.» (idem, ibidem: 76).
Sara Reis da Silva, na apresentação do livro, Porto, a 5 de Fevereiro de 2011.