João Manuel Ribeiro, o autor do recente “A Circulação Precoce dos Relâmpagos” não é bem um novo autor porque este já é o seu quarto livro de poesia. “A circulação precoce…” segue-se a “Regras do Mel e da Flor” (Fundação Manuel Leão, 2002), “Amores quase perfeitos e outras arritmias” (Editorial 100, 2002) e “Livro de Explicações” (idem, 2003). Nesta mesma editorial publicou em 2004 a sua tese de mestrado em Teologia (feita na Universidade Católica do Porto) intitulada “A evolução espiritual de Antero de Quental”.
Por formação sou muito diferente de João Manuel Ribeiro. Não sou nem poeta nem teólogo como ele, mas sim físico (trabalho com átomos e não com palavras, faço moléculas e não poemas!) e, para mal dos meus pecados, bibliotecário nos tempos mais recentes. Mas tenho pelo menos uma outra afinidade com ele. Gosto das palavras, dos seus sons, dos seus sentidos, das suas combinações… O livro “A Circulação Precoce dos Relâmpagos” (da Cosmorama, uma editora de poesia da Maia, dirigida por José Rui Teixeira) diz-nos que João Manuel Ribeiro gosta das palavras, dos seus sons, dos seus sentidos, das suas combinações. Gosta do que ele chama a textura das palavras. O livro, que está dividido em quatro partes, começa por um capítulo intitulado “A textura das palavras”. Dos 11 poemas que o integram, oito incluem a palavra “palavra” entre as suas palavras. São, portanto, poemas sobre a própria matéria dos poemas (sim as palavras estão para os poemas como os átomos estão para as moléculas).
E, além de palavras, falam do corpo, de várias partes do corpo e das várias formas que essas partes do corpo têm de se exprimir por palavras e sem ser por elas. Os poemas são corporalmente sentidos, os poemas têm corpos, por vezes em ferida. No primeiro, o poema é ora fonte de prazer ora fonte de sofrimento: “Ora um tumor de alegria / ora a cicatriz de dor continuada”. No segundo, o poeta acrescenta que “há palavras com a liberdade nas veias / a sangrar”. No terceiro, o poema é comparado ao “nevoeiro da manhã”, que nos “penetra nos ossos e na espinha / causa um calafrio intenso na boca”. Mas um dos poemas que mais gosto nesta primeira parte é também o mais sucinto, quase um “hai-ku”, tecido de palavras todas elas muito simples (de resto, é também da simplicidade das palavras que advém muita da força destes poemas). E nele o poema já não é o nevoeiro da manhã, mas sim um corpo sujeito ao nevoeiro da manhã: “sempre que a manhã / abria a porta da casa/ e se aninhava / no corpo / do poema // o cão ladrava”. Quer dizer o poema pode ser invasor e invadido, ocupante e ocupado, o outro e eu. No universo poético, o poema está por todo o lado!
Por vezes são as palavras que vêm ter connosco e outras vezes somos nós que vamos ao encontro das palavras. Por vezes sem querer, como nos versos “naufrago nas palavras / como entre despojos de um navio afundado” ou, outras vezes, por querer, como no verso “há palavras em que apetece fazer uma tenda / descansar” ou, como noutro verso, “acampei intempestivamente na margem esquerda da página”.
A poesia de João Manuel Ribeiro é, como se vê, individual, intimista. As palavras são ditas na primeira pessoa do singular. Mas, apesar de parecer pouco social, não deixa por isso de nos convidar para a paz e para o amor: “São de amor as palavras que me escorrem das mãos”. Como as palavras têm corpo sente-se, por vezes, até uma certa pulsão erótica, ainda que bastante discreta. Repare-se nos versos que se seguem ao verso citado: “.. e retomo o prazer / de os despir no chão de cada palavra dormente / para depois os rever assim nus e crus dentro do / poema em que me envolvi…” Noutro poema mais à frente, ao encontrar o “corpo exposto do poema”, o poeta escreve, na mesma linha: “Não digas o que quer que seja ouve apenas / o pulsar da magnólia dentro da página ofegante / depois vem plantar os teus pés sobre os meus pés / trepar-me desmesuradamente.” As metáforas botânicas são não só sugestivas como apropriadas, porque os livros têm folhas tal como as plantas e as folhas dos livros são feitas de plantas.
Algumas palavras são benditas e outras são malditas: “Malditas sejam as palavras / que não guardam o coração nas mãos”. Juntam-se neste verso as duas partes do corpo mais invocadas pelo nosso autor: as mãos e o coração. As mãos aparecem em cinco desses poemas ao passo que o coração aparece em três dos poemas iniciais, se me é permitida a estatística.
A mão de João Manuel Ribeiro continua a escrever sobre as mãos no próximo capítulo, intitulado “O rumor das mãos”. Nos 11 próximos poemas, só em dois é que as mãos não aparecem. E o coração volta a aparecer junto das mãos. Os versos seguintes, que expõem o título do capítulo, mostram-no bem: “O que guardo do mistério é o rumor / Das mãos disparadas ao coração.”
O terceiro capítulo intitula-se “Rente à debulha da luz”. O tema geral é a luz, ou melhor, o dia e a noite, o sol e o escuro, a manhã e a tarde. Tal como Goethe cujas últimas palavras foram “Mais luz!”, também João Manuel Ribeiro anseia pela luz: “a noite / sonha o silência no colo e sonha um dia claro”. No início do capítulo volta de novo a espreitar uma tensão erótica inspirada pela botânica: “O perfume das buganvílias / Abraçava a tarde tão atrevidamente / Que o rubor alastrava às nêsperas”. E as mãos e o coração continuam presentes, sempre unidas ou pelo menos próximas. Como se pode verificar do seguinte excerto: “sentar-me-ei escrupulosamente diante do coração vegetal / como quem talha na pedra um fio de luz”. Ou nestoutro: “mas tu avaliavas em diagnóstico febril / e curavas na medida exacta das palavras bombeadas até ao coração”
Por último, cai como um relâmpago o quarto capítulo, que dá o o título ao livro: “Circulação precoce dos relâmpagos”. Agora o tema da maioria dos poemas passa a ser a intempérie, o temporal, a desordem, sem prejuízo do lugar das mãos e do coração. Termina assim o poema que contém o verso do título e que está destacado na contracapa: “Acaso se pode ser apenas a mão-cheia de vento / a tingir de fúria os desejos / do coração / frágil”. A luz, ou melhor a ânsia de luz, também permanece. Senão vejamos: “há-de haver seguramente nas sombras desta viela / um poço de luz onde me acocorar”.
Deixem-me adivinhar as influências de João Manuel Ribeiro. Decerto a poesia luminosa de Eugénio de Andrade. É de lá que virá muita da sua luz. Mas também um poeta não menos luminoso, António Ramos Rosa. Mas uma outra influência é decerto a de um poeta menos conhecido, Daniel Faria, que foi amigo do autor (tal como ele cursou Teologia na Universidade Católica do Porto). Daniel Faria, que se tornou monge beneditino em Singeverga, foi um relâmpago na moderna poesia portuguesa. Brilhou por pouco tempo pois faleceu em 1999, com apenas 28 anos: morrem cedo aqueles que os deuses amam. Ou se se preferir no singular, aqueles que Deus ama.
Os poemas deste livro não falam directamente de Deus. Mas falam dele através das palavras, das mãos, da luz e dos relâmpagos. Não é o Deus pessoal, o senhor dos relâmpagos e de voz tonitruante do Antigo Testamento, que Antero de Quental abandonou, mas sim o Deus que está, para quem fala com ele, por todo o lado.
Carlos Fiolhais, Publicado a 4 de Junho de 2007 em “O Primeiro de Janeiro” (na secção “Das Artes das Letras”)